A Rússia recusa renovar o acordo com a Ucrânia para a exportação de cereais através do Mar Negro. E há sempre duas formas de olhar para o mesmo caso. Quem ganha e quem perde? Haverá mais fome no mundo ou quem mais precisa está salvaguardado? Será a Europa ou África o continente mais prejudicado?
“O risco de uma crise humanitária ou de fome é muito baixo. Podemos ter, sim, uma crise inflacionária”. A frase é de Tiago André Lopes, comentador da CNN Portugal e especialista em relações internacionais, para descrever um dos impactos mais temidos com o fim do acordo para a exportações de cereais entre a Rússia e a Ucrânia: a fome.
O que não quer dizer que não haja quem vá sofrer com esta mudança: “os europeus, com a subida dos preços”, perante uma oferta mais reduzida. Porquê? Porque “Putin já prometeu publicamente o fornecimento aos países africanos. Não nos podemos esquecer que, na pandemia, a Rússia foi a primeira a apoiar os estados africanos com vacinas. Quando foi renovado o acordo dos cereais, os estados africanos foram muito vocais, porque tinham esse receio. Mas não estamos a vê-los agora no espaço público”, aponta.
É uma visão que contrasta com outra, trazida pelo major-general Isidro Morais Pereira, que, ao apontar os países africanos e do Médio Oriente como os principais destinos dos cereais ucranianos e russos, também os vê como os principais focos de pressão para que o Kremlin não deixe cair o acordo.
“A Rússia está cada vez mais isolada e não tem interesse em estragar as relações com o continente africano. Em matéria diplomática, se a Rússia não aceitar este acordo, vai ficar muito mal vista, sobretudo por aqueles que acha serem os seus parceiros privilegiados. Teria um efeito bumerangue. Estaria a cometer um ato de haraquíri [suicídio], com muito mais gente contra ela”, considera o especialista militar.
Turquia: defensora do acordo ou interessada na sua queda?
Se a Rússia não ceder na renovação do acordo, a Turquia pode voltar a assumir a dianteira da mediação, embora, para Tiago André Lopes, se tenha “mexido muito devagar” para que que esse desfecho positivo se concretize.
O presidente turco Erdogan já avisou que, se a Rússia decidisse não prolongar o acordo, a própria Turquia tomaria a seu cargo a escolta dos navios mercantes da Ucrânia. Mas é para levar a sério? “Não me parece que seja possível isso acontecer”, diz Tiago André Lopes, que aponta antes um caminho mais benéfico para a Turquia: o país a colocar navios mercantes turcos a transportar cereais das duas partes, tanto da Ucrânia como da Rússia.
Também o major-general Isidro Morais Pereira concorda que o cenário de ter navios turcos a fazer a escolta aos cereais seria algo extremo. “Em última instância, a Turquia cumpre o que prometeu. A Turquia tem meios navios para fazer isso. E Erdogan tem desafiado claramente Putin”, diz.
Mas se um navio turco acabasse atacado, isso significaria uma guerra e o envolvimento da NATO? O especialista militar explica que “não é claro”, uma vez que “estamos a falar em escolta em águas internacionais”, não havendo propriamente ataque ao território de um aliado.
“Rússia a esticar a corda”, diplomacia a falhar
Para Tiago André Lopes, não há dúvidas: “a queda do acordo faz com que a diplomacia dê dois passos atrás”. Então, porque chegámos a este ponto?
Pelo facto de a Rússia não estar a conseguir escoar os seus fertilizantes, como previsto no acordo, e pelas dificuldades de aceder ao mercado dos seguros. “Sem eles, os navios não conseguem sair dos portos”, resume. Bruxelas chegou a admitir o acesso do Banco Agrícola Russo ao sistema SWIFT, mas o passo não se concretizou.
“A Rússia está a esticar a corda, a querer mostrar poder. Só que o poder é cada vez mais pequeno. E, ao protelar ao mais possível este acordo, está a tentar obter ganhos”, refere o major-general Isidro Morais Pereira.
Resta esperar para ver se vai conseguir alguma vitória. Para a ONU, pelo menos, esta decisão russa significará “um golpe para as pessoas que precisam”. Palavras do secretário-geral António Guterres, que garantiu que a organização tentará facilitar o acesso dos mercados aos cereais e fertilizantes ucranianos.